CROSTA. Diário de bordo de uma egocêntrica.

Tô cansada de ler coisas “dos outros”. Ela dizia. Na verdade, o que queria era ler coisa minha. Que dissesse respeito só a mim. Coisa assim: não copiou de ninguém. Mais gente pode até mesmo ter esse problema, mas não copiou. Personalizou, diria. Ser bem eu mesma. Por um momento, pensar só em mim. Sem coisas gerais. Inspirações em grandes causas etc etc etc Vamos lá!

CROSTA. Diário de bordo de uma egocêntrica. Tenho mania de pé. Um pé só. Meu pé direito parece que tem uma crosta, mas é melhor que o esquerdo. Somente dois anos depois de comer bastante, sentia que eles inchavam, ardiam. Mas o que me incomoda mesmo é a crosta. Ela é difícil. Passo cremes. Lixo. Esfolio. Ela não sai. Fica lisinho um tempo e cresce aquela cultura de crosta toda de novo. Fico pensando se é interno. É, acho que é interno. Peguei a receita de uma dermatologista e vi o creme e uns comprimidos de tomar alguns dias. Pensei se poderia repetir a receita. Ela cresce de novo. Lembro que quando fui ao laboratório para tirar material para fazer exames, tinha passado creme. A moça disse que não poderia porque creme não podia. Mas tirou do material debaixo das unhas. Doeu. Peguei o exame, levei para a médica. Ela deu a receita e tomei. Fiz tudo direito. Ficou bom um tempo, mas a crosta voltou. Coisa estranha. Será que teria de passar creme e tomar remédio a vida toda? A crosta deixou te ter importância. As vezes me importo com coisas sem importância. Na maioria das vezes, diria. Todas as pessoas tem alguma crosta. Na cabeça, caspa. Na cara, espinha. Na boca, herpes. No ouvido, cera. Nas unhas, micose. Nas mãos, calos. Nos cotovelos, cascão. No joelho, cascão. Até chegar aos pés, ainda outras crostas. Por que eu tinha que me importar com a minha, tão embaixo? De todas eu acho pior, a caspa. Nunca tive. Tá vendo? Caspa eu nunca tive. Mas o peso sobre os pés que faziam inchar era de outra coisa. Esse era importante. Retenção de líquidos. Retenção de líquidos é coisa séria. Faz inchar. Crosta nos pés não. O problema é que não consigo parar de me importar com a coisa sem importância e dar importância a coisa importante. Entende? Será que só eu sou assim? Vira e mexe ela me tira o foco. Mas também, pensa. Espinha no rosto é sem importância. É crosta e incomoda. Será que quem tem espinha no rosto se incomoda como eu com os meus pés? Inchaço não. Mas com a crosta sim. A pessoa da espinha deve se solidarizar comigo. Da caspa também. Parece mesmo que sou de outro planeta. Pois é. A lua tem uma crosta. Marte também. Vermelha, va lá! Mas tem. Saturno, tem três crostas. O sol é um verdadeiro rei da crosta, quente. Lembrei da minha retenção de líquidos. O líquido tende a sair. Mas a crosta não. Bom, escrevi sobre mim. Estou mais aliviada. Bom, muito bom. Pelo menos consegui sublimar o sentimento de exclusão literária.